29 de nov. de 2016

Controle

    O barulho de meus pensamentos é o mesmo de um engarrafamento. As ideias encadeiam-se, tumultuam-se, constrangem-se; egoístas como são, cada uma suga para si toda a atenção que deveria ser depositada em outro lugar ou mesmo em outro momento: no presente. Não sei se dizer se por duas décadas estes impulsos de distração espreitavam nas sombras de uma razoável eficiência escolar, advinda mais de uma facilidade espontânea do que de uma efetiva luta contra a preguiça, e só agora os pude perceber, ou se são coisa nova, efeitos colaterais de uma percepção mais ampliada e amadurecida pela exposição à aporia filosófica. Ambas as alternativas me parecem igualmente possíveis, embora algo me diga que para acreditar na segunda seria preciso ser mais ingênuo, ou ao menos desconhecer nossa monstruosa capacidade de escondermos de nós mesmos nossas próprias limitações agudas.
    Nunca me passou pela cabeça cogitar ser ansiedade. Ela, que é tão frequente que chega a ser quase banal, talvez seja exatamente o que me esmaga contra minhas próprias expectativas. É uma inaptidão quase absoluta de me devotar a atos monotônicos, que por sua própria natureza exigem que eu deixe de lado a minha velha companheira, a impaciência; pois ainda maior que o tédio é a erupção de possibilidades, e uma vontade explosiva de concretizar cada uma delas — explosiva justamente porque estoura e se dissipa segundos mais tarde. E, assim que o faz, deixa um vazio surdo precisamente como o que se segue:
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26 de nov. de 2016

Sociedade industrial

    Formigas! É realmente como formigas que nos esbarramos, como nos mais realistas dos sonhos; é como formigas que nos organizamos em sociedades acéfalas e mecânicas, construindo formigueiros à luz de ordens que se transvestem de instintos. Vidas automáticas, incontestadas, irrefletidas. Nas fileiras da escola me sentei, ao banheiro pedi para ir, a provas padronizadas e cronometradas me submeti. Fui instrumento tolo para o meio que não toma o homem como fim. Séculos! Séculos de ordens, ordens lá de cima, "ordens lá de cima", diziam! É proibido questionar. Na escola, no lar, na igreja. E mesmo os refúgios históricos e geográficos, quando houve momentos e lugares onde foi possível impugnar-se das verdades implícitas, do totalitarismo não dito — mesmo estes recantos tão arduamente conquistados e tão comumente desqualificados são apenas lampejos de clareza, centelhas fracas e efêmeras de lucidez, insuficientes diante da hegemonia da ignorância. As pessoas estão cegas, cegas! E o que elas são incapazes de enxergar é exatamente a escuridão absoluta. Cegas por sua própria lente de mundo, projetando Lúcifer umas nas outras e vendo a figura europeizada de Jesus Cristo quando se olham ao espelho. Para sobreviverem no caos organizado pelo lucro, as pessoas ignoram seu próprio lado humano para que possam atender as exigências de um mercado impiedoso, e, finalmente industrializadas, sorriem, com a alma doente: "Sou bem sucedido."
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25 de nov. de 2016

Incabível

    Eu não sinto que poderia jamais dizer tudo o que precisa ser dito. Não apenas por não haver tempo hábil, mas também por parecerem as próprias palavras insuficientes diante do insondável. Não há sequer disposição, nem de quem diz, muito menos de quem ouve. Quem gastará valiosos minutos a desafiar a imensidão com perguntas sem respostas? Quem é desocupado e atrevido o suficiente para afastar o cotidiano automático e analisar a escuridão com uma lupa?
     A vida talvez seja mesmo muito curta. Ainda assim, quantas páginas já não foram preenchidas? Preenchidas uma atrás da outra, no punho e na tinta, por gente de uma outra época — uma na qual não havia tecnologia para otimizar nosso tempo, e talvez exatamente por isso também não houvesse tanta cobrança. Vinte e quatro horas eram mais que vinte e quatro horas, mesmo marcadas muitas vezes pelo sol, alheio às vontades humanas; mesmo com a certeza da morte muito mais próxima e inadiável, com tantas cóleras divinas e anos tão curtos. E com isso tudo não desejo expressar saudosismo, nostalgia a um tempo que sequer vivi, e que em outros aspectos era certamente muito mais asqueroso que o segundo milênio; digo apenas que a hipermodernidade vem com um preço. Eis que, mesmo com informações inesgotáveis à ponta de meus dedos, ainda me perco no vazio. Ainda me reluto, tentando reunir toda a energia e disposição de meus músculos mentais mal treinados para ao menos servir de receptáculo para os tesouros intelectuais de riqueza inestimável já produzidos na humanidade, e cada vez fico mais seguro de que é impossível. E de solapo me sobrevém a sede insaciável de contribuir com o pouco que tenho, e que no entanto me parece muito mais do que serei capaz de mostrar, de estruturar, de registrar. Tudo pode ser enterrado comigo em minha cova, e embora ter ciência disso não me cause tristeza, me desperta um senso de absoluto desperdício.
    É por isso que sigo conversando sozinho, na rua e no papel, na tentativa desesperada de viver. Falo para uma plateia vazia e incerta e imagino nela outras almas, tão perdidas quanto a minha, mas que com sorte podem sentir minha companhia à distância, pois eu certamento sinto a de vocês. A escrita é um abrigo existencial, um templo abstrato que não nos deixa cair no abismo da concretude mórbida, estúpida, dessensibilizante. É um exercício constante do autoconhecimento, do reconhecimento, da empatia como forma mais básica de compreensão da realidade. É esculpir a sua subjetividade e deixá-la ser escupida pelas almas que te tocam. É não se deixar afogar pelo oceano sobre nossas cabeças, expelindo a cada palavra um pouco da água que nos invade.
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17 de nov. de 2016

Sintonia

    Foi preciso que eu permitisse me desgastar, que estivesse sedado pelo cansaço, esvaziado da pressa que move o mundo e nos atropela; só então pude visualizar, no fim de um longo dia e ao som de uma leve esperança quase triste, a melancolia de meus irmãos de alma, filhos do meu tempo. Pude me olhar no espelho e ver minha geração sendo consumida pela própria solidão. Foi a tristeza acumulada de muito mais que duas guerras, de uma liberdade pisada, trancafiada, murcha. Foi o peso dos olhares lançados pelos adultos, com seus ternos finos e assuntos importantes, desqualificando tudo que não se encaixasse em seu mundo feito de concreto — cinza, quadrado, áspero, severo. E nos olhares desolados dos novos adultos, ainda (e para sempre) sonhadores pueris, pude ver uma nostalgia impossível que se voltava para o futuro: não um futuro jamais concretizado, mas um que tem todo o potencial para se fazer presente e não o faz. Uma solidão coletiva, tão dolorosamente coletiva, abafada pelas buzinas e despertadores, e agora finalmente tão nítida no silêncio.
    Romperemos o concreto, irmãos; já estamos fazendo-o há séculos, habitando os escombros desta loucura sóbria asfixiante, sempre resistindo. A arte é o efeito mais reluzente e onipresente desta resistência; é a marca permanente na história deixada por exilados de ideias. Na música, na literatura, nos abraços não registrados pelos livros: lá estão os que viram muito além do ego e que entenderam o incompreensível. Eles nasceram, viveram seu legado e morreram, e aqui estamos nós, repetindo seus passos como quem crê descobrir como andar, tateando e dançando no escuro da existência.
    E é na solidão de pensamentos insubordinados que os espíritos livres encontram companhia. É uma presença que transcende épocas e acomete os corações mais férteis de cada uma delas. Se você colocar a cabeça para fora da janela de casa, pouco antes do amanhecer, quando os únicos acordados são os passarinhos e alguns raios tímidos de sol, e, na brisa úmida e fresca, fechar os olhos, garanto que entenderá o que estou dizendo. É só ali que se mostra a tormenta harmônica e profunda de consciências: na calmaria inominável.
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