15 de mai. de 2017

Aborto e impotência

    Quantos futuros não enterramos em nome da insegurança, por cedermos a uma cautela embebida em covardia?
    Quantas vezes nosso próprio julgamento sobre si, francamente injusto e falsamente realista, não nos impediu de ser quem queríamos — ser quem podíamos — ser, no aqui e no agora?
    Quantas vezes não fomos amordaçados pelo medo, imobilizados pelo sentimento de insuficiência?
    Pois não permitamos mais. Somos fortes, e a nossa verdade é potência — potência de ser e de fazer, sem censuras. É no perceber e agir que existimos; não no aguardar e temer. Essa inércia asfixia. Movimentemo-nos em direção ao que nos move, e movamos, conosco, o mundo.
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14 de fev. de 2017

A mesa

    Passei semanas ziguezagueando pela casa, vivendo nela como se vive em qualquer outra casa: acordando, escovando os dentes de forma automática, passando diversas vezes pelos curtos corredores sem olhá-los nos olhos, feito uma formiga. Dentro daquelas paredes invisíveis — ocultas pelo tempo, pelo “acostumar-se” dormente e imperceptível —, praticamente vivi a rotina. Nunca estive ali, contudo; esteve apenas meu corpo. Os dois olhos sempre pregados em espelhos negros, acesos e iluminados com ícones, notificações, barras de brilho e volume. Ali, sim, vivi a rotina; não praticamente, desta vez, mas totalmente, de alma devota e presente, de atenção canalizada. Nas últimas semanas, não estive no quarto em que cresci, na casa de meus pais; estive em Pernambuco, conversando com um amigo de lá; estive aflito no Espírito Santos, com a deflagração do crime urbano; estive em Brasília, cheio de revolta, um momento antes de ser tomado por uma desilusão triste, resignada, sem qualquer esperança. Estive no fim dos anos setenta ao ouvir Willie Nelson e Jim Croce, estive nos confins de minha própria imaginação ao por o ponto final numa ficção que comecei há mais de um ano. Estive em Curitiba, refém de minhas memórias recentes e de meus anseios sobre um futuro que começa daqui a sete dias, na Psicologia.
    Agora mesmo, ao digitar estas palavras ocas sob o resquício de brisa noturna que entra pela fresta de minha janela nesta cidade quente, não estou propriamente aqui; estou focado neste trabalho tênue e [paradoxalmente] firme de tecelão, nesta transmissão tão linear e tão livre de ideias, que poderá calhar, algum dia, de cair à vista de leitores ocasionais, destes que as probabilidades cósmicas nos presenteam quando menos esperamos. Quando for o momento (momento este que você, leitor, chama de agora), estarei talvez dormindo, ou fazendo uma refeição no restaurante universitário, ou recomendando a algum amigo minhas descobertas musicais recentes, esperando que sintam cada “arrastar” de notas longas em toda a sua melancolia ou, a depender, em toda a sutileza de sua esperança tímida e apreensiva. Não sentirei uma pontada na coluna, ou mesmo uma quentura nas orelhas, ao que responderei como se responde a uma epifania: “Veja só! Tem alguém lendo algo que escrevi!”. Não. A coisa vem sem notificação; vem e vai embora, e nem se fica sabendo. Escrever isto aqui é como jogar palavra ao vento, como enterrar um tesouro [nem tão valioso] e jogar o mapa fora por não dar importância. Ao pensar em tudo isso, continuo fora de minha cozinha; continuo não vendo as paredes, os móveis, a desorganização que floresce nos meandros da vida cotidiana — essa marca de nós na casa, essa pitada humana nas coisas inertes.
    No entanto, perco-me por um segundo e observo a mesa; percebo então que ela é de madeira alaranjada, como de um laranja realmente vivo e alegre. Possui um verniz curioso, que, ao mais leve movimento, torna algumas listras desta madeira um pouco mais claras, assemelhando-se muito àquelas cartinhas holográficas. De repente, olho a mesa; assim, com um susto. Não, você não entendeu; realmente olho a mesa. Não apenas a miro com os olhos, mas a processo, a absorvo mentalmente. Vejo a mesa na minha frente, sob meus braços, como se nunca a houvesse visto na vida; como se tivesse brotado em minha frente de maneira súbita, tendo estado sempre ali.
    Não sei dizer com precisão por quantos anos temos esta mesa em casa. Nesses quinze anos (talvez), lembro-me de tê-la visto apenas no dia em que a compramos, numa loja de móveis seminovos na cidade vizinha. Do dia seguinte em diante, ela simplesmente desvaneceu, e o fez de forma tão quieta que, até o presente momento, eu nunca havia percebido seu sumiço.
    Tento fazer o mesmo, então, com o resto da casa. Vejo paredes brancas, que algum dia devem ter tido uma beleza generosa e elegante, apesar de não terem extravagância alguma, e que, hoje, já se demonstram amarelas e empoeiradas pelo peso dos anos. Vejo uma mariposa num canto, logo antes de perceber que é só um trinco no concreto. Vejo, mais longe, a quina metálica na qual abri dois pontos na testa em virtude de uma provocação infantil de meu irmão mais velho; havia me esquecido completamente disso, apesar de levar comigo uma cicatriz muito semelhante à do Harry Potter, bem como a memória de literalmente levar uma injeção na testa e atestar que a anestesia fora pior que o incidente. Vejo alguns ímãs de geladeira que remontam a praias que visitamos em fins de ano, quando ainda viajámos, há mais de uma década.
    Tenho medo. Medo de amanhã acordar e não ver nada disso; de continuar habitando paredes transparentes, impessoais, sem história, que sirvam apenas de palco invisível para uma vida virtual. Medo de algum dia acabar cometendo o mesmo erro — se é que já não cometi — com as pessoas; de olhá-las no rosto e não procurar o fundo de seus olhos, de não sentir mais aquele magnetismo que se sente quando se quer abraçar alguém. Tenho medo de viver uma ideia, de esquecer o presente, de viver com a cabeça no futuro e o coração no passado, ou mesmo o contrário. Tenho medo de continuar permitindo que o turbilhão mental me engula e me sequestre do aqui e agora, como faz a todo o momento.
    O que é este texto, aliás, senão um fluxo, um fragmento distendido desse turbilhão, exposto numa vitrine? Uma vitrine com endereço virtual, escondida a céu aberto, protegida pelo próprio desinteresse dos mal intencionados, que sequer chegarão a ler até aqui.
    Eu já não sei mais. Não que um dia tivesse sabido. É que estacionar um caminhão desgovernado parece sempre difícil, por mais que as flechas tenham sido, no caminho, arremessadas com precisão milimétrica.

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26 de dez. de 2016

Lança

    Há palavra para todo tipo de gente e momento. Palavra doce, macia, melosa; palavra áspera, espinhosa, ácida; palavra que bate como o vento em nosso rosto e se dissolve em si própria. Gosto das precisas: palavras que sabem exatamente como se virar no ar e contorcer-se na mais formosa valsa antes de acertar o alvo exatamente onde deve; alvo que pouco antes nem sabíamos estar ali, e que agora se mostra desvelado, aplacado. O alvo está em nós, é claro; ou não está, como é o meu caso com a poesia. A mim, bem parece um torneio lírico de roleta russa, voando faca para todo lado e não acertando lugar algum; ou melhor, acertando lugar-algum.
    A valsa das palavras é muito característica de quem as lança e de quando as lança. Algumas mais cadentes, mais sólidas, mais míopes; ou talvez sistemáticas, confusas, inseguras. Se os olhos são a janela da alma, como ressoam os romancismos uníssonos, as palavras certamente são a porta da frente. São a comunicação entre a nossa casa solitária e o mundo. Mesmo quando carregam em seu ventre mentiras, são sempre sinceras; é na metapalavra que habita o que ela quer — mas raramente consegue — dizer. Ela grita, sorri, seduz, esperneia, oferece, mas não diz; ela em si é o dizer.
    Jogo agora facas para o alto de maneira simplória, com sérias dúvidas se verão nesta performance um minimalismo proposital ou uma limitação motora. Ou talvez sequer sejam capazes de observar os alvos que desejo acertar; é bem capaz que enxerguem apenas lâminas imbecis ao vento, e que seja eu o louco a lançar dardos na estrutura da estrutura, nas sombras do simbólico. Não se sabe; nunca fui capaz de antever os aplausos ou as vaias de uma plateia futura diante de um palco fantasma. Eu sei lá porque diabos continuo arremessando tanta parte de mim para fora desta minha ilha barulhenta e ao mesmo tempo tão silenciosa. Cogito se o faço só por fazer, ou se sou movido pela esperança de um dia alguém encontrar os alvos.

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29 de nov. de 2016

Controle

    O barulho de meus pensamentos é o mesmo de um engarrafamento. As ideias encadeiam-se, tumultuam-se, constrangem-se; egoístas como são, cada uma suga para si toda a atenção que deveria ser depositada em outro lugar ou mesmo em outro momento: no presente. Não sei se dizer se por duas décadas estes impulsos de distração espreitavam nas sombras de uma razoável eficiência escolar, advinda mais de uma facilidade espontânea do que de uma efetiva luta contra a preguiça, e só agora os pude perceber, ou se são coisa nova, efeitos colaterais de uma percepção mais ampliada e amadurecida pela exposição à aporia filosófica. Ambas as alternativas me parecem igualmente possíveis, embora algo me diga que para acreditar na segunda seria preciso ser mais ingênuo, ou ao menos desconhecer nossa monstruosa capacidade de escondermos de nós mesmos nossas próprias limitações agudas.
    Nunca me passou pela cabeça cogitar ser ansiedade. Ela, que é tão frequente que chega a ser quase banal, talvez seja exatamente o que me esmaga contra minhas próprias expectativas. É uma inaptidão quase absoluta de me devotar a atos monotônicos, que por sua própria natureza exigem que eu deixe de lado a minha velha companheira, a impaciência; pois ainda maior que o tédio é a erupção de possibilidades, e uma vontade explosiva de concretizar cada uma delas — explosiva justamente porque estoura e se dissipa segundos mais tarde. E, assim que o faz, deixa um vazio surdo precisamente como o que se segue:
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26 de nov. de 2016

Sociedade industrial

    Formigas! É realmente como formigas que nos esbarramos, como nos mais realistas dos sonhos; é como formigas que nos organizamos em sociedades acéfalas e mecânicas, construindo formigueiros à luz de ordens que se transvestem de instintos. Vidas automáticas, incontestadas, irrefletidas. Nas fileiras da escola me sentei, ao banheiro pedi para ir, a provas padronizadas e cronometradas me submeti. Fui instrumento tolo para o meio que não toma o homem como fim. Séculos! Séculos de ordens, ordens lá de cima, "ordens lá de cima", diziam! É proibido questionar. Na escola, no lar, na igreja. E mesmo os refúgios históricos e geográficos, quando houve momentos e lugares onde foi possível impugnar-se das verdades implícitas, do totalitarismo não dito — mesmo estes recantos tão arduamente conquistados e tão comumente desqualificados são apenas lampejos de clareza, centelhas fracas e efêmeras de lucidez, insuficientes diante da hegemonia da ignorância. As pessoas estão cegas, cegas! E o que elas são incapazes de enxergar é exatamente a escuridão absoluta. Cegas por sua própria lente de mundo, projetando Lúcifer umas nas outras e vendo a figura europeizada de Jesus Cristo quando se olham ao espelho. Para sobreviverem no caos organizado pelo lucro, as pessoas ignoram seu próprio lado humano para que possam atender as exigências de um mercado impiedoso, e, finalmente industrializadas, sorriem, com a alma doente: "Sou bem sucedido."
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